Mittwoch, Juli 02, 2008

brains on fire OU navigueira

O espírito do dia é um Pixies esganiçando na vitrola empoeirada, me fazendo lembrar do tempo em que a Figueira era nave. Minha mãe era secretária de uma escola de ballet e muitas manhãs passei brincando nas salas espelhadas; gostava de dobrar as portas e ver os vários-eus-refletidos, que em minha imaginação infantil configuravam paquitas de mim mesma. Acho que por isso sempre quis cantar, escrever ou pintar; mera questão de vício representativo. A escola de ballet ficava no segundo andar da escola de natação, na frente da qual erguia-se esplêndida a Figueira de minha infância. Depois das manhãs nas quais me divertia com os espelhos enquanto minha mãe atendia telefonemas, eu almoçava marmita de arroz com ovo e ia para a escola. As aulas acabavam às 17h30 e meu colégio ficava duas quadras a esquerda da academia, caminho que eu fazia com o prazer de uma colegial comendo azedinhas grudentas e a rapidez das meninas em idade de usar bermudas curtas e correr sem constrangimentos. Dessa feita, cinco minutos depois já estava eu na minha Figueira, acomodada na minha poltrona de galhos; assistindo o pôr-do-sol ao som das conversas de bailarinas de 14 anos penteando cabelos, vestindo malhas e estalando elásticos. Coques, grampos, banheiros femininos. Foi ali que aprendi algumas dessas noções de vaidade: a janela do vestiário povoada por agendas coloridas, escovas capilares e cheiro de suor, contemplados pelos meus distantes olhos de 8 anos. Lá embaixo, na sala de natação, uma loira tingida enfiada em polainas dava indicações de movimentos braçais em frente à piscina. Mais tarde, eu viria saber que tratava-se a mãe do meu co-piloto.
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Meu co-piloto de árvore-nave devia ser uns 2 anos mais jovem, era magricelo e carregava carrinhos que enfiava na areia. Sempre tive nojo dessa areia urbana na qual a gente cava, cava, mas tudo que encontra é cimento. Ele parecia não se importar. Ficava imerso em suas mãos e as rodas de plástico enquanto a mãe pulava fora d'água e eu girava 90 graus no galho mais baixo da Figueira. Um dia, assim, sem motivo, com a espotaneidade de uma criança liberta das racionalidades adultas, eu disse "Sobe aqui, vamos viajar! Tá vendo aquele tronco ali do meio? É a minha cabine, a Figueira é a minha nave". Ele me olhou num misto de surpresa e desconfiança, acredito que mais surpresa que desconfiança, ou então a própria mistura inusitada de insegurança e alegria ali contida era que produzia aquele efeito nos olhos dele; uns olhos que me diziam que se eu continuasse mais um pouquinho bem pouco conseguiria atar para sempre. Eu queria atar um garoto na minha rede de folhas e cores, pela primeira vez; carregar alguém para as minhas sombras. Porém, havia um detalhe, pequeno, mas importante: o destino da viagem era uma invenção minha e eu não estava brincando. Digo que não estava brincando pois levava deveras a sério a idéia do Tele-Transporte. E então expliquei ao garoto "Se tu subir aqui na minha nave a gente viaja pra outra dimensão. É só sentar e fechar os olhos. É uma viagem muito rápida. Quando a gente chegar tu vai ver que as coisas vão estar todas iguais, mas serão outras".
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[E agora me pergunto se ele realmente achava que eu estava brincando, e por isso mesmo aceitava, como alguém que consente brincar de roda ou de Dominó. -- mal sabem os garotos.]
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Da primeira vez que ele consentiu foi como se eu tivesse nas costas um peso maior que o da mochila que carregava nas costas indo-e-vindo do colégio para a Figueira. Mas era um peso diferente, uma carga que eu queria carregar mas não me sabia capaz. Queria descobrir. E por isso naquele dia dirigi minha nave-árvore com mais concentração e auto-controle.
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[É preciso disciplina para elevar os alteres pessoais das nossas descobertas.]
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Eu estava descobrindo o prazer de soltar o peso, quando estacionei aquela árvore nos meus sonhos, e disse para o garoto "Chegamos. Agora vamos dar uma volta e reconhecer o território... Como tu pode ver a quadra de tênis continua ali e também a piscina e também a minha mãe e a tua. Mas não te deixa enganar, estamos em outro mundo. Essa quadra de tênis é uma selva disfarçada de quadra de tênis e bem atrás da gente vem uma cobra! Anda, corre em zigue-zague pois é assim que se confunde a cabeça das cobras!". E ele corria, e eu corria, e ziguezagueávamos entre ciprestes urbanos ao redor da cancha que mais parecia uma enorme caixa de areia. Depois, exaustos, deitávamos na grama, e então eu mostrava pra ele as nuvens e as cores do pôr-do-sol, que já não eram as mesmas de quando estávamos na nave, e essa era minha única prova: as andanças do céu no tempo de um final de tarde. "Viu só, tudo em volta parece igual, mas se tu olhar pra cima, vai ver que tá tudo diferente", eu disse. E foi assim que pela primeira vez eu vi os olhos de surpresa e desconfiança de um garoto se tranformando em expectativa e orgulho... ele saiu correndo e gritando 'Estamos em outro mundo! Estamos em outro mundo" e nem lembrava mais do brinquedinho com rodas de plástico atirado no chão, prova incontestável da realidade pálpavel. "Vamos entrar na academia", ele disse, "Quero ver minha mãe de mentira". E então nós entramos; ele, exultante de compartilhar apenas comigo aquele segredo transcendental, olhava para os alunos de natação com uns olhos de amor-próprio exacerbado que só voltei a ver de novo na idade adulta, em olhos de usuários de cocaína. Tanto faz amor ou cocaína, dizem. E então ele avançou em direção aos braços metodicamente saculejantes da mãe e gritou exultante ''Tu não é minha mãe! Tu não é minha mãe! Tu é uma mentira!"
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Uma pena que essa brincadeira de tele-transporte místico tenha durado tão pouco, pois a mãe dele era, afinal de contas, colega de trabalho da minha. E eu, obviamente, tive minhas viagens transcendentais precoces confundidas com uma certa noção de MENTIRA, e por conta disso me configurei ali uma criança mentirosa e pertencente ao grupo das 'más companhias' para o filho da professora de natação; apesar de extremamente inteligente e criativa, como vocês podem notar. O talento para o tele-transporte ficcional já estava no meu corção bem antes de Pixies, assim como a tendência manipulatória digna de uma femme-fatale. Ok, talvez eu esteja exagerando. Talvez eu fosse apenas uma criança. Mas acredito que os sentimentos de reação padronizados já estão todos lá, pois ainda hoje tanto faz convencer um garoto a entrar na minha nave ou na minha cama, assim como tanto faz viajar para fora ou para dentro das árvores; os cabelos vão continuar voando e o gordo suado vai continuar esganiçando hey paul, hey paul, hey paul, let's have a ball. Tanto faz uma bola alimentada de plástico ou clorofila, um cabelo jovem sedoso ou um cabelo velho seboso. Dizem que os cabelos morrem, e então a questão se limita ao uso ou não do gel fixador durante a vida. E se a vida é uma idéia fixa, só nos resta lembrar. Ou sonhar.
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[meigo]
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Trilha sonora: desengavetando Pixies (Doolittle + Surfer Rosa)