Da infância;
os jardins, os vestidos brancos leves roçando na grama e observados pelas bermudas xadrezes e bocas babando melado de pirulito; a bolsa vermelha da Mônica sendo roubada por uma precoce vaidosa de cachos enlaçados; os meus cabelos, roçando no presunto disposto na mesa de aniversário para a mão alcançar o negrinho. A foto: em escolas de luxo, crianças sempre blasé e lustrosas sem idéia da diferença entre carros pessoais e comboios urbanos.
Eu recebia cartas de amor e ao voltar da escola no carro de meu avô mostrava timidamente o envelope enfeitado com marcas de batom. Lesbianismo infantil? Não, era um "ele" o remetente, mas ditava as cartas para a governanta, não muito culta, mas que melhor sabia se expressar com palavras do que um garoto e ainda beijava os envelopes. Eu, de qualquer forma, não ligava; só corria em volta da escola tentando recuperar a bolsa vermelha da boneca, volta e meia vinha um, chamado João, pegava na minha mão e me levava para deitar na grama e cheirar a margarida olhando as nuvens por detrás dos galhos das árvores; todos os ambientes parecem tão grandes quando somos crianças; depois, quando lá voltamos, são sitiozinhos irrisórios.
Eu então deitava ao lado de João, enquanto os outros corriam, brincavam de ser polícia, fugitivo ou simplesmente dançarinos. "Ele" pedia à professora que contasse histórias de terror. João talvez soubesse que "ele" me amava, mas estava mais interesado em pegar na minha mão e sorrir bafos de Youplat, enquanto o outro me abordava na hora da saída e me entregava as benditas cartas com marcas de batom, as quais eu recolhia da mão de sua babá e o chamava para um local mais afastado do portão de saída; mostrava o buraco feito para abrigar o ar-condicionado, o qual ele observava atentamente e, só então, eu amassava a carta e enfiava entre duas grades que protegiam o buraco. Um dia ele chorou, e eu sorri. Na verdade, eu sorria sempre; e talvez tenham sido os primeiros sorrisos, assim, de dentro da vaidade mais arraigada.
É tarde, é tarde, é tarde já dizia o coelhinho.
Me convenço de que o ajudante da memória é o sonho; duas crianças vestidas com mantos vermelhos e coroas douradas correndo por uma floresta monocromaticamente verde em direção a um telefone antigo e redondo, também vermelho, sobre um banco de madeira em meio ao capim deserto. Ela atende, e uma voz do outro lado diz que o menino rei a fitando é um apaixonado. Ela sorri, como uma rainha.
7 Kommentare:
Não que eu não tenha o que comentar, mas é que com o final que tu escreveste, vou ser obrigada, ou quase isso, a te mostrar outro site que tem a ver com sonhos. É segredinho.
www.dromma.org
enjoy it.
Lendo o teu texto, fica impossível não lembrar dos meus romances de infância. Sempre fui um romântico, desde gurizinho. Não escrevia cartas, é verdade, mas me recordo que uma vez dei de presente para "ela": um coelho de chocolate. Era páscoa.
Sacrifiquei minha cestinha por amor. E senti-me tão orgulhoso pelo desprendimento, que até deixei de gostar da guria.
Bárbaro!!!
Toda a infância, toda a infância. Eu estava em Neverland, Wonderland, no Sítio do Pica-Pau Amarelo, na Jângal de Mowgli com os lobos, seguindo as pegadas do princepezinho nas areias do deserto do Saara. Aqui estamos, hoje. Gabriela, que pequeno, belo e poderoso texto.
Nessa cidade de pedra, sempre disse, faltam imensos sitiozinhos irrisórios. Mas na porta do colégio eu ensaiava palavras que nunca me sairam, nem 15 anos depois e hoje sei, nunca passarão de um ensaio, pra Carol.
Cheguei a dar uma boneca [qual é a pretensão que eu tinha ao dar uma boneca pra ela?], chocolates e talvez rosas. E tudo que a Carol fez foi partir meu coração infantil. Mas ela passou mais de 10 anos linda e intocável, até ver seu retrato por esses dias e perceber que o melhor é deixar ela lá na frente do colégio. As vezes a infância não deve ser revisitada, ou se muito acabar num texto bacana e ficar assim.
Vou ficar esperando lá no portão pra sempre, eterno. Pobrezinha.
Poxa, Gabi...
Obrigada pelo sentimento que brotou por aqui enquanto li :]
não se inunda a memória sem que seja oniricamente. e minha vida tomou uma curva e entrou em um buraco de coelho apressado, e tudo aqui a minha volta mudou de cor; o sabor, nem se fala, me vem galopante e quase não consigo resistir, e eu quero, eu quero e não consigo.
por quê? por que e como?
tem um mundo subcutâneo dançando louco nesse momento. e eu não tinha visto, Gabriela Linck, assim, nesse espaço, nesse momento, isso, assim. como se mede o especialismo, como se especializa o ordinário, óh céus, não é nada disso, é um mundo explosivo que não tem nada a ver com a Terra quadrada na qual alguns vivem e para a qual erroneamente podemos remeter os objetos mais comuns do nosso dia-a-dia, como esse computador algumas vezes tratado como frio. mas não mais, não pode. hoje é janela pra mim mesmo, grande, farta e absurda, um sonho descendo a montanha como as águas de um rio por demais cheio depois da chuva, e choveu tudo de uma vez só.
(desorganizei minhas palavras em outros momentos por puro gosto. nem sempre é opção. agora, eu sou delas porque não estou em lugar nenhum. agora, elas são uma benção de dizer alguma coisa quando tudo de mim está esvoaçante e indizível, levado por esse milhão de formigas bêbadas que não fingem a unidade de um agrupamento.)
a Alice, como um avatar moderno de Dionísio, está feliz e vibra. o mundo se inundou com ela, comendo coisas a diminuir, bebendo coisas a aumentar. sou eu que ela abraça e leva junto, e não tenho culpa ou escolha, olha só, ela não sei se é forte, mas me leva tão facilmente...
desculpa o choro. sempre deve ter bastado pegar na mão. mas sempre foi desnecessariamente necessário correr em volta da casa amarela, gritar "me sigam", ter a voz mais alta e ser o primeiro, fazer essas firulas que a gente acha que é o caminho quando se é pequeno e olha-se os grandes cheios de jeitos e levando o mundo com eles, os jeitos a levá-los. desculpa. bastava olhar os olhos, pegar na mão, e estar junto nos céus, na grama, junto no respirar.
as cartas deveriam fazer encenação suficiente; é de se demorar muito tempo para entender o que já se sabia, não é? nunca é um jeito, nunca foi. é simplesmente a verdade para além deles, ou algo assim. um olhar, um respirar, e as mãos. crescer para ser jovem, quando não se vive desde que nasce, Gabi.
acho que os beijos eram do próprio. os jeitos já brigam nas crianças, mas não devia importar; em algum lugar, importava mais a marca do que a sexologia da tinta.
quem é Gabriela Linck? já sei que não importa. é uma força. vai, sacerdotiza de Alice.
ela escreve e me transborda. quem sou eu? me entorta.
lágrimas que correm pra dentro, girando redemoinho abaixo. muito, muito obrigado.
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