Donnerstag, November 09, 2006

Lunaris

Da infância;
os jardins, os vestidos brancos leves roçando na grama e observados pelas bermudas xadrezes e bocas babando melado de pirulito; a bolsa vermelha da Mônica sendo roubada por uma precoce vaidosa de cachos enlaçados; os meus cabelos, roçando no presunto disposto na mesa de aniversário para a mão alcançar o negrinho. A foto: em escolas de luxo, crianças sempre blasé e lustrosas sem idéia da diferença entre carros pessoais e comboios urbanos.
Eu recebia cartas de amor e ao voltar da escola no carro de meu avô mostrava timidamente o envelope enfeitado com marcas de batom. Lesbianismo infantil? Não, era um "ele" o remetente, mas ditava as cartas para a governanta, não muito culta, mas que melhor sabia se expressar com palavras do que um garoto e ainda beijava os envelopes. Eu, de qualquer forma, não ligava; só corria em volta da escola tentando recuperar a bolsa vermelha da boneca, volta e meia vinha um, chamado João, pegava na minha mão e me levava para deitar na grama e cheirar a margarida olhando as nuvens por detrás dos galhos das árvores; todos os ambientes parecem tão grandes quando somos crianças; depois, quando lá voltamos, são sitiozinhos irrisórios.
Eu então deitava ao lado de João, enquanto os outros corriam, brincavam de ser polícia, fugitivo ou simplesmente dançarinos. "Ele" pedia à professora que contasse histórias de terror. João talvez soubesse que "ele" me amava, mas estava mais interesado em pegar na minha mão e sorrir bafos de Youplat, enquanto o outro me abordava na hora da saída e me entregava as benditas cartas com marcas de batom, as quais eu recolhia da mão de sua babá e o chamava para um local mais afastado do portão de saída; mostrava o buraco feito para abrigar o ar-condicionado, o qual ele observava atentamente e, só então, eu amassava a carta e enfiava entre duas grades que protegiam o buraco. Um dia ele chorou, e eu sorri. Na verdade, eu sorria sempre; e talvez tenham sido os primeiros sorrisos, assim, de dentro da vaidade mais arraigada.
É tarde, é tarde, é tarde já dizia o coelhinho.
Me convenço de que o ajudante da memória é o sonho; duas crianças vestidas com mantos vermelhos e coroas douradas correndo por uma floresta monocromaticamente verde em direção a um telefone antigo e redondo, também vermelho, sobre um banco de madeira em meio ao capim deserto. Ela atende, e uma voz do outro lado diz que o menino rei a fitando é um apaixonado. Ela sorri, como uma rainha.

7 Kommentare:

Anonym hat gesagt…

Não que eu não tenha o que comentar, mas é que com o final que tu escreveste, vou ser obrigada, ou quase isso, a te mostrar outro site que tem a ver com sonhos. É segredinho.

www.dromma.org

enjoy it.

bomqueiroz hat gesagt…

Lendo o teu texto, fica impossível não lembrar dos meus romances de infância. Sempre fui um romântico, desde gurizinho. Não escrevia cartas, é verdade, mas me recordo que uma vez dei de presente para "ela": um coelho de chocolate. Era páscoa.
Sacrifiquei minha cestinha por amor. E senti-me tão orgulhoso pelo desprendimento, que até deixei de gostar da guria.

Bárbaro!!!

bomqueiroz hat gesagt…
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Guga Schultze hat gesagt…

Toda a infância, toda a infância. Eu estava em Neverland, Wonderland, no Sítio do Pica-Pau Amarelo, na Jângal de Mowgli com os lobos, seguindo as pegadas do princepezinho nas areias do deserto do Saara. Aqui estamos, hoje. Gabriela, que pequeno, belo e poderoso texto.

grub hat gesagt…

Nessa cidade de pedra, sempre disse, faltam imensos sitiozinhos irrisórios. Mas na porta do colégio eu ensaiava palavras que nunca me sairam, nem 15 anos depois e hoje sei, nunca passarão de um ensaio, pra Carol.
Cheguei a dar uma boneca [qual é a pretensão que eu tinha ao dar uma boneca pra ela?], chocolates e talvez rosas. E tudo que a Carol fez foi partir meu coração infantil. Mas ela passou mais de 10 anos linda e intocável, até ver seu retrato por esses dias e perceber que o melhor é deixar ela lá na frente do colégio. As vezes a infância não deve ser revisitada, ou se muito acabar num texto bacana e ficar assim.
Vou ficar esperando lá no portão pra sempre, eterno. Pobrezinha.

pig hat gesagt…

Poxa, Gabi...

Obrigada pelo sentimento que brotou por aqui enquanto li :]

Pedro Lunaris hat gesagt…

não se inunda a memória sem que seja oniricamente. e minha vida tomou uma curva e entrou em um buraco de coelho apressado, e tudo aqui a minha volta mudou de cor; o sabor, nem se fala, me vem galopante e quase não consigo resistir, e eu quero, eu quero e não consigo.

por quê? por que e como?

tem um mundo subcutâneo dançando louco nesse momento. e eu não tinha visto, Gabriela Linck, assim, nesse espaço, nesse momento, isso, assim. como se mede o especialismo, como se especializa o ordinário, óh céus, não é nada disso, é um mundo explosivo que não tem nada a ver com a Terra quadrada na qual alguns vivem e para a qual erroneamente podemos remeter os objetos mais comuns do nosso dia-a-dia, como esse computador algumas vezes tratado como frio. mas não mais, não pode. hoje é janela pra mim mesmo, grande, farta e absurda, um sonho descendo a montanha como as águas de um rio por demais cheio depois da chuva, e choveu tudo de uma vez só.

(desorganizei minhas palavras em outros momentos por puro gosto. nem sempre é opção. agora, eu sou delas porque não estou em lugar nenhum. agora, elas são uma benção de dizer alguma coisa quando tudo de mim está esvoaçante e indizível, levado por esse milhão de formigas bêbadas que não fingem a unidade de um agrupamento.)

a Alice, como um avatar moderno de Dionísio, está feliz e vibra. o mundo se inundou com ela, comendo coisas a diminuir, bebendo coisas a aumentar. sou eu que ela abraça e leva junto, e não tenho culpa ou escolha, olha só, ela não sei se é forte, mas me leva tão facilmente...

desculpa o choro. sempre deve ter bastado pegar na mão. mas sempre foi desnecessariamente necessário correr em volta da casa amarela, gritar "me sigam", ter a voz mais alta e ser o primeiro, fazer essas firulas que a gente acha que é o caminho quando se é pequeno e olha-se os grandes cheios de jeitos e levando o mundo com eles, os jeitos a levá-los. desculpa. bastava olhar os olhos, pegar na mão, e estar junto nos céus, na grama, junto no respirar.

as cartas deveriam fazer encenação suficiente; é de se demorar muito tempo para entender o que já se sabia, não é? nunca é um jeito, nunca foi. é simplesmente a verdade para além deles, ou algo assim. um olhar, um respirar, e as mãos. crescer para ser jovem, quando não se vive desde que nasce, Gabi.

acho que os beijos eram do próprio. os jeitos já brigam nas crianças, mas não devia importar; em algum lugar, importava mais a marca do que a sexologia da tinta.

quem é Gabriela Linck? já sei que não importa. é uma força. vai, sacerdotiza de Alice.

ela escreve e me transborda. quem sou eu? me entorta.

lágrimas que correm pra dentro, girando redemoinho abaixo. muito, muito obrigado.