Mandalla, lembras de quando te conheci em uma dessas noites de entorpecimento e pilhérias? Lembras do quanto tu me impressionastes com os dotes irônico-naturais contornados pelo aparato sarcástico que só possuem os de alma solta? Lembra da noite seguinte? Pois é claro que te lembras. Na noite seguinte nos encontramos de novo no bar. Não bebi. Dessa vez reparei que te trajavas com a elegância de um falcão. Tu estavas no fundo do bar, perto das caixas de garrafas vazias de cerveja, recostada a uma parede com remendos de madeira. Lembro como se fosse ontem. Um homem te abordava e demorei a perceber que era apenas um pedinte de passagens escolares. Próximo ao teto pendia um retrato de Marlene Dietrich, pobre musa envolta pelo ar abafado de nicotina e vapor alcoólico. Eu observava, tu rias e tagarelavas. Parecias absorta por aquela atmosfera purgatória, como uma deusa das almas penadas. Teu bando de amigos carentes de abraço entragolava-se na primeira mesa do bar. Chovia. Um cigarro molhado pendia nos meus dedos e eu acorrentado ao primeiro banco do balcão. Pedi uma água sem gás. Tu me vistes, me acenastes e continuastes junto aos teus engradados de bebida. O pedinte se afastava com as mãos vazias. Alguns cinco metros nos separavam. Vestias uma saia preta com botões azuis de céu, combinando com tuas meias três quartos. Três quartos de mim quase desmaiaram de deleite, pois sabes tão bem em que parte os homens são visuais! Mas o outro quarto solitário reclamava voz e vontade e talento. Tive medo de quebrar a distância, tive medo de tuas ironias desabarem como flores murchas esquecidas em um vaso sem água e, de fato, desabaram. As flores de ontem, Mandalla. Essa foi a noite das flores de ontem. Nessa noite me mostrastes uma foto tua no cemitério da Recolleta, lembras? Beijavas uma flor morta de caixão. Mas era tão amarela e bonita, dissestes. Da onde vem esse teu gosto por flores mortas, Mandalla? 'Não', me dsissestes, 'eu não gosto de nada morto, gosto é de tocar no que está duro e seco'. Mas isso foi depois, no teu apartamento, o apartamento mais triste do bairro mais faceiro que as noites perdidas já encontraram. Mas isso foi depois, bem depois. Depois daquelas quatro horas que permanecestes junto ao meu colo e minhas vísceras eretas de desilusão em um mísero balcão de taberna. Quatro horas nas quais só aliviastes tua carga do meu corpo para utilizar o banheiro, mas não a descarga. Naquele banco plástico em cores sujo-pastéis no qual eu permanecia sentado falei com teu nariz pela primeira vez, te recordas? Foi então que decidistes me levar ao teu recinto particular e me apresentastes o retrato das flores mortas. Não tinham cheiro, dissestes. Não cheiravam a nada pois os narizes não cheiram, apenas falam e sentem. Shakespeare dizia que as emoções ficam no fígado, tu dizias que ficam no nariz. E dizia que eu nunca te teria se não tivesse antes o teu nariz, se não entrasse em perfeita comunhão com ele. Foi então tu me oferecestes o chá, o chá que eu deveria beber pelo nariz. Dissestes que era um costume russo. Eu acreditei. Acreditei tanto em ti Mandalla, mas, agora eu sei, aquelas palavras saíam pela tua boca, e eram portanto levianas e frágeis como os sentimentos que saem do coração. O que sai do coração vai parar na boca, o que sai do nariz vai pro cosmos interior e rasga. Mas rasga bonito.Tu tinhas razão, Mandalla. Os narizes apreciam tão melhor um bom chá. Então o que eu queria mesmo era te pedir desculpas pelo que saiu de minha boca naquela nossa segunda e última noite, pois não eram verdades de nariz, eram frivolidades para orelhas. E olhos, oh, pobres olhos. Mas não, não me arrependo, Mandalla. Jamais esquecerei os anos que passei venerando esse órgão vil; o órgão da literatura, do cinema, da fotografia, da nutrição visual, ou seja, do impossível. Jamais quero ter olhos novamente, Mandalla, mas não, eu não tinha o direito de te pedir para arrancá-los de mim; entenda que eu simplesmente não queria mais te ver como um nariz, não queria pensar que a sedução que exercestes sobre mim era pura e infantil, que ela jamais voltaria a me impressionar, que as noites de narizes são muitas e as de olhos são mentira. Mesmo assim, jamais deveria ter te requisitado como minha cirurgiã espiritual de olhos, pois não tens espírito, Mandalla, só tens um nariz cordial. Por isso teu corte falhou sobre mim, pois mesmo sem os olhos ainda consigo ver com os ranhos.
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