Meu vizinho, um cara clássico. Lia livros em alemão encapados com folhas de revista no ônibus e nos dias de chuva saía de casa com uma touquinha cirúrgica cobrindo seus cabelos brancos e volumosos para os lados, numa mistura de Bozo com Einstein. Era formado em Física e Medicina pela UFRGS e auxiliava nas pesquisas do Departamento de Física Nuclear da Universidade. Descobri isso há dois dias pela Zero Hora, e agora penso como o mundo é bizarro, mais bizarro do que sempre, tantos anos ali ao lado, tantas noites sozinha e ele ao lado, também. Solidão compartilhada é tão bonita mas, tá, talvez não seja tudo isso, só estou sensibilizada. Mas ele era tão bonito no seu estilo cabeção discreto que só falava com os vizinhos para presenteá-los com goiabas e juntar as bolas que as crianças chutavam para o seu pátio.
Mataram o meu vizinho, 3 dias e não consigo parar de pensar. Vejo as poças de sangue me debruçando no muro, as crianças também viram e perguntam "será que ele fez mal pra alguém?". Asfixiaram o velhinho com uma sacola plástica e deram pauladas em seu pescoço para depois arrastar o corpo até o pátio, onde o cobriram com algumas folhas secas. Eu estava na sala tomando cervejas e assistindo "Factotum", não ouvi nada, nem o cachorro.
Eu sei que informações sobre crimes como esse não trazem nada de útil para os leitores, apenas fofoca e especulação. Quantos relatos também já não li desse tipo "a gente sempre acha que não é com a gente até acontecer por perto" e continuei achando que não era comigo. A gente sempre vai achar que não é, até que o jardim da nossa própria casa fica infectado por uma áurea estranha.
A violência urbana já um clichê, que merda.
Eu sei quem matou mas não vou escrever aqui, acho, inclusive, ainda bem, que não se trata de violência urbana e sim de violação espiritual do caráter. Algum escritor famoso disse que admirava 3 tipos de pessoa: o assassino, o padre e a puta. Não lembro a justificativa da opinião mas lembro que achava o auge do pensamento intelectual aprimorado. Agora penso que o assassino está fora do círculo. Não o admiro mais. Não é como nos filmes, sei que descobri tarde, mas nunca tinha conhecido um ao vivo. Talvez minha idéia de assassino fosse aquela de um destruidor destemido e amoral, e é impossível negar que existe sim uma áurea sedutora ao redor dos crimes, principalmente os que envolvem rituais satânicos. São crimes sem utilidade pública mas no entanto são os mais chocantes. Qual o motivo de nos interessarmos por conflitos que dizemm respeito somente aos envolvidos? Há mais ou menos uma semana atrás um casal se suicidou num motel e, curiosamente, a menina de 14 anos que supostamente se matou por causa da opinião dos pais a respeito do seu namoro com o músico de 30 anos, morava na rua atrás da minha. Ambos os crimes são daquele único tipo que podemos dizer "o raio não vai cair no mesmo lugar", pois não é como um crime em uma rua específica, que depois podemos evitar de passar ou morar, é um crime com PESSOAS específicas, e que já morreram. Mesmo sabendo da equivalência entre estes crimes e fofocas da Contigo, já acessei a página policial da Zero Hora por diversas vezes na mesma semana. E não consigo parar de me sentir péssima, por isso peço licença para utilizar este espaço público como terapia, não que os outros textos também não sejam mas, hoje, pela primeria vez, senti vontade de falar assim, claramente, sobre fatos reais e apelativos. Me desculpem, sei que isso é péssimo, mas eu precisava compartilhar, dizem que terapia em grupo é muito eficaz, imagina então terapia em rede mundial.