Existe um conto do Cortázar em "Las Armas Secretas" cuja personagem principal é uma senhora com ares muito elegantes que costumava servir a grandes outras senhoras da alta sociedade de Buenos Aires, mas que agora não costuma mais ser chamada para servir em festas, talvez pelo envelhecimento das feições, talvez por causa da crise, provavelmente pelos dois, afinal, Cortázar, como a maioria dos bons autores, sempre mistura o lado político/social com problemáticas bem existenciais/individuais das personagens;
I AM YOU AND WHAT I SEE IS ME!
O conto começa com a personagem principal recebendo em sua casa uma madame, e só percebemos que essa personagem principal se encontra em uma classe social inferior a da madame quando a mesma (a personagem principal) lamenta sua falta de cuidado ao "quase oferecer um chá" para madame (e isso pegaria muito mal). Toda essa "áurea" do conto tão bem trabalhada pelo autor acaba sempre me confundindo (como em "Cartas de Mamá" ou "A Casa Tomada") e tenho certeza de que ele faz de propósito. Aliás, o que importa a classe social da empregada se sua atmosfera é tão ou mais glamourosa do que a das pessoas que a contratam? O que importa a relação entre dois ou mais indivíduos se estão envolvidos na mesma rede de angústia? Em um conto, acredito que o que importa é justamente mexer com nosso valores e impressões sociais.
Mas, clichês a parte, o que eu queria dizer é que esta madame visita nossa personagem para contratá-la (e o trabalho estava escasso) para servir em uma festa, e nossa personagem regojiza-se com a idéia de novamente tocar em talheres de prata e copos de cristal; ah, como seria lindo limpar aquelas torneiras de ouro e coisas do tipo. Mas, chegando na festa, a empregada de atmosfera chique descobre que foi contratada para tomar conta dos cachorros da madame (que possuem quarto e colchões próprios).
,
Eu não terminei o conto (que se chama "Los Buenos Servicios") e nem pretendia fazer uma análise do mesmo, apenas mostrar como me sinto, de volta ao Brasil.
Não, eu não estava na Europa, estava na Argentina, tão South America quanto nós, e no entanto tão mais lustrosa de cores douradas que emanam seus habitantes. Há mendigos? Muitos, e dormem escondendo o rosto em guarda-chuvas. Pedem dinheiro? Pedem, e não só dinheiro como desculpas por estarem solicitando dinheiro. Não que eu tenha considerado isso louvável do ponto de vista da "boa educação" e sim pelo fato de nos tratarem de igual para igual e não naquele tom de "me agradeça já que não estou te roubando"; o que acontece justamente por também serem tratados de igual para igual por pessoas de classes mais elevadas. Eu, acostumada a cenas clássicas do tipo maltrapilhos sendo escurraçados por donos de bar na Cidade Baixa, fiquei emocionada com o carinho do segurança do Burguer King com algumas menininhas de rua. Não que ele tivesse dado um hamburguer a elas nem paparicado nem nada, mas o jeito como as olhava e sorria e falava em um tom paternal me comoveu. No McDonald's da Andradas os mendigos não podem nem sentar na beirada da calçada, que dirá pedir batatas fritas em paz. Eu, uma menina de classe-média, já fui expulsa pelo porteiro quando sentei em um murinho do prédio "Morada da Redenção". E como tal já fui expulsa da beirada do canteiro do Shpping Praia de Bellas também. Em Buenos Aires, todos sentam na calçada que for, mendigos ou não, seja para entornar cervejas ou descansar os ossos com carne. O máximo que nos aconteceu, bebendo Quilmes litrão em uma escadaria de prédio (muito mais chique que o "Morada da Redenção"), em San Telmo, foi uma senhora dizer: "vocês vão ficar mais confortáveis sentando um pouco mais pra lá, pois aqui é o lado onde abrem a porta". A elegância é preservada graças à consciência política/social, que é muito maior por parte de todos; talvez por muita gente ter empobrecido da noite para o dia (não é como aqui, que apesar de a pobreza aumentar, somos pobres desde sempre) e isso ter gerado uma comoção maior; choque traz solidariedade, afinal. Enfim, dá para perceber uma preocupação e mesmo um afeto dos mais ricos com os mais pobres, uma atmosfera "estamos todos no mesmo barco".
I am you and what I see is me.
Ah, e não existem "latinhas" na Argentina (pelo menos eu não vi nenhuma), as menores coca-colas são vendidas em garrafinhas de vidro de 237 ml.
[O vidro está nos recipientes e nos refletores; frágil e quebradiço como todos os deformadores dos objetos reais e sólidos. Ou líquidos. O vidro também derrama, escorre, derrete, colore. A proteção é ilusória, mas deliciosamente transparente.]
4 Kommentare:
que bom ter teus textos de volta.
e te digo: que vontade doida deu em mim de empanada em San Telmo, de malabaristas na Ricoleta ( não sei se escreve assim), de flores na 9 de julho, de sombra e cães em Palermo,de café em qualquer parte - onde é sempre possível e barato chegar de táxi - e, mais que tudo, vontade de Cortázar.
Pra mim, a cidade maravilhosa sempre foi Buenos Aires.
Obrigada, Gabriela, por ter me trazido estes bons ares.
Ah! Eu também me impressionei muito com a altivez dos pedintes. E eu tenho uma dessas garrafinhas barrigudas de 237 ml que trouxe de lembrança! :)
Gabs, não vou nem tocar na análise.
Sensible e sencilla (spanglish rules) e direta ao ponto.
Gostei bastante, partilho das impressões e creio que ao chegar e principalmente sair de BA sente-se uma falta de algo chamado civilidade ou como você bem definiu, solidariedade.
Bem bacana.
(Esqueci de te dizer pra comprar Dulce de Leche de La Serenisima! Damn! Lo mejor de los mejores!).
Voltou!
Saudades. Ontem fomos naquela festa que deixamos de ir no mês passado, que a Jade não quis ir e tu pulou do barco - o débil poeta pagou nossa conta, e nós bebemos até morrer de rir. Frozen. Não sei como cheguei em casa, mas o fato é que estou no trabalho. Pedinte envidraçada. De verdade.
Pastoriz
Sua impressão de Buenos Aires é muito rica. Eu estava te acompanhando pelas ruas, lendo o post. Bom que você está de volta.
Kommentar veröffentlichen