Deviam ser umas 4 ou 5 da manhã, estávamos voltando de uma festa e procurando um lugar pra comer e comprar cigarros, aí entramos em um desses bares 24h da Cidade Baixa com cara de xis-ruim-que-demora-duas-horas, lotado de mesas de plástico com batatas-fritas e amigos dividindo litrão de coca-cola. Entramos, batalhamos nossa mesa e eu sentei minha bunda cansada e fiquei olhando pra rua. Na calçada bem em frente tinha um velho de calças curtas e sapatinho bem engraxado carregando uma dessas bolsas-pastas pretas de material nem duro nem mole pendurada no ombro, acho que ele usava também uma dessas camisas sociais baratas, mas muito bem colocada pra dentro das calças em estilo centro-peito. Eu fiquei olhando pra ele; gosto de velhinhos e achei bonitinho o jeito como ele conversava com o frentista coçando o queixo, como se estivesse refletindo sobre as palavras profundas daquele homem de cabelo desgrenhado abanando para os carros com um paninho de flanela.
Ficaram um tempão conversando. A gente ficou um tempão olhando o cardápio e depois pediu 3 baurus, um cigarro e uma ceva. Os dois continuaram ali, até o fim dos nosso baurus, cevas, coca-colas e acredito que até o fim de todos os nossos cigarros também. Aí uma hora eu vi o velhinho tirando alguma coisa da bolsa; era um desses potes de marmita do 1,99 com uma tampa laranja. Ele estendeu o pote para o frentista e o homem tirou dali um bolinho de carne, tentando disfarçar uma fome absurda que dava pra perceber só quando a comida chegava na altura da boca; como numa espécie de demonstração de respeito ele demorava o máximo possível aquele caminho do bolinho até a boca dirigindo seus olhos famintos para os olhos do velho que agora falava; disfarce que caía por terra depois que os bolinhos entravam de uma vez só na boca e mão descia angustiada até o pote de novo. A subida é lenta e a descida rápida, como em todas as escaladas da vida.
Quando os bolinhos acabaram o velhinho fechou o pote com a tampa laranja (fixei muito a cor do pote pois acho laranja uma cor angustiante e ao mesmo tempo alegre, dizem que é por isso que o Mc Donald's usa essa cor, para as pessoas comerem, ficarem alegres e irem embora) e guardou na pasta, apertou a mão do frentista (e eu pensei: bom, agora ele vai entrar no carro e ir embora) e foi indo em direção ao ponto de ônibus, mancando como um bom velhinho. Foi aí que alguém da nossa mesa entupida de cinzeiros entupidos e pratos sujos de maionese e ketchup perguntou: "o que tu tanto olha?" e eu respondi "o velhinho ali", e então outra pessoa da mesa olhou pra fora, largou o seu delicioso bauru no prato e disse "é, realmente não é uma boa hora para velhinhos estarem na rua".
Quando a gente saiu do restaurante, uns 20 minutos depois, ele ainda estava na parada de ônibus, e já deviam ser umas 6 da manhã nessas alturas, quando eu saí correndo feito uma retardada até lá, antes que ele entrasse no seu meio de transporte e eu nunca mais pudesse dizer "que liindo isso que o senhor fez, o senhor é demais, etc, etc". Muitas coisas passaram na minha cabeça enquanto corria bêbada de amor até aquele ponto de ônibus; admiração, vontade, tristeza, vergonha. Ele me olhava correndo em sua direção, com certeza já tinha percebido que eu o observava o tempo todo, e ele me olhava com um desses olhares calmos, complacentes, resignados porém satisfeitos; um desses olhares de vovô que vai chegar em casa, tirar os sapatinhos engraxados e colocar uma chinelinha de pano, depois tirar a chinelinha de pano e dar um beijo de boa noite na vovó enquanto deita na cama de madeira velha comida pelos cupins. Ou talvez fosse o olhar de um homem solitário aprisionado em um corpo cansado e de pêlos brancos, indo para sua casinha vazia em Gravataí, na qual vai chegar pelas 7 da manhã e ainda dar comida ao cachorro e encher as tigelas do pátio com farelos de pão para os pássaros. Migalhas, a vida é feita de migalhas.
Eu bati no ombro dele e disse "Desculpa, eu tava ali olhando o senhor e achei tão bonito e o senhor vem todo o dia aqui dar comida aos frentistas?" e ele riu aquele sorriso de idosos com rugas em volta da boca e poucos dentes e disse que trabalhava em um estacionamento ali perto, "o senhor trabalha toda noite até essa hora?", eu perguntei, e ele disse "há 45 anos", e eu disse "que lindo", como uma boa burguesinha sem noção voltando de uma festa no Jekyll. Ele continuou sorrindo aquele meio sorriso tão bonito e claro, de uma clareza dessas que deixam a gente cego e pequeno; e aí ele contou que nunca comia todos os bolinhos que ele ganhava lá no estacionamento e por isso guardava em um potinho e quando saía de lá ia levar o potinhos aos frentistas que ficam ali às vezes o dia todo sem comer; achei bizarro (um estacionamento que que dá bolinhos de carne aos funcionários) e depois pensei que na verdade talvez o que unisse ele aos frentistas fosse justamente isso de ambos cuidarem de veículos alheios, porém o velhinho era um frentista de nível mais elevado, quase "rico". E aí o ônibus dele chegou e eu o abracei e disse "feliz natal pro senhor, tudo de bom, mesmo" (uma coisa tão automática de se dizer mas que veio tão sem esforço naquele dia).
E comecei a lembrar disso hoje, em plena avenida Salgado Filho, enquanto observava um outro velhinho vendendo aqueles sucos de frutas cítricas que dá pra sentir o gosto doce de puro açúcar só de olhar, embaixo de um céu azul de 40 graus e que com certeza também se acha muito rico pois trabalha em uma avenida onde as pessoas dormem enroladas em papelão, e isso é deveras amargo, e me lembrei de um documentário que vi na TV sobre uma criança agonizando durante 7 horas em uma avenida central de São Paulo ou Rio enquanto os pedestres que provavelmente são assaltados toda semana mal olhavam de canto. E amanhã é meu aniversário, e não tenho vontade de comemorar, e talvez isso tudo que pensei não passe de uma busca de motivos nobres para a minha tristeza sem função social.
8 Kommentare:
Então assopra as velas com alguma delicadeza e sinta-se contente de poder olhar pros velhinhos e admirá-los. Ser pequena burguesa é uma (con)sequência, mas olhar pros velhinhos com esses olhos e buscar o significado das palavras engasgadas, uma construção. Passe pra frente esse legado e disfrute do olhar; siga escrevendo, cresça, cresça mais e seja feliz.
(e - se o bolo estiver gostoso - manda um pedaço pelo correio)
Feliz aniversário!
Oi Gabi, este teu relato me lembrou por diversas vezes alguns textos da Clarice Lispector e alguma fixação dela por situações/pessoas bastante resignadas em algum momento quotidiano. Eu também teria ficado emocionada com o velhinho mas realmente não teria ido falar com ele.. Que bom que tu o fez. Com certeza ele vai ficar bons dias pensando nisso.
Feliz aniversário para ti também, feliz ano novo e toda essas coisas que se desejam nestas datas. Quanto ao comemorar o aniversário: Não vejo romantismo algum em estar ficando mais velha (estou sendo negativista). Eu não comemorei também.
Beijos.
Agora sim, feliz ano novo.
olhe
pense
reaja
seja
Um clichê, mas é de coração: feliz aniversário, Gabriela. Seu signo estará subindo no horizonte astral (dos astros) na mesma hora em que você veio ao mundo, há alguns anos. Isso, creio, é uma coisa legal de se pensar durante um aniversário. Por falar nisso, qual o seu signo no horóscopo chinês? Sigo os signos só por saudade de um tempo em que eu achava bonitas as constelações e seus nomes. Gostei de saber que você gosta dos velhos. Esse negócio que você escreveu aí é tocante, gostei disso também. Tudo de bom, seu signo está brilhando.
parabéns =)
lindo
lindo o velhinho
lindo os velhinhos
lindo o texto
:~~
UM MUITO FELIZ ANO INTEIRO (NÃO SÓ O ANIVERSÁRIO) - SER FELIZ PODE SER UMA ESCOLHA
UM BEIJO AFETUOSO
TE ADMIRO E GOSTO
não consigo comentar como quero
então vou ser curta e estranha
post lindo! me emocionou
tu é uam pessoa muito especial e de valor para o mundo
eu te admiro DEMAIS
e te adoro
eu realmente te adoro
ps: não acredito que tu não comemorou teu aniversário! :~
eu queria MUITO comemorar tua existencia :)
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